A República falsa
- Uma sentença histórica
- A República falsa
- A democracia falsa
- O que merecemos construir
“Muita gente se surpreende com esse estado permanente de perturbação da ordem e, muitas vezes, da paz nos países ibero-americanos. Esse fato aparentemente inexplicável para aqueles que não conhecem nossos países, aparece como até natural para os que sabemos como se desenvolve a vida real desses povos explorados pelo imperialismo, com a cumplicidade das oligarquias nativas que prosperam com isso, amparadas em suas guardas pretorianas, que não hesitam em se converter em forças de ocupação quando a ‘colônia’ ou os interesses criados estão em perigo.
Esse estado de coisas tem sua origem nos próprios começos do século XIX e, simultaneamente com nossa independência, sobre os escombros do Império Espanhol, começa-se a montar seu substituto: o Império inglês que, com grande inteligência, não utiliza a força para dominar, mas sim os meios econômicos convenientemente empregados, gravitantes sobre os interesses da incipiente classe dirigente dessa nascente comunidade. É assim que nascem nossas ‘Repúblicas’, com uma aparente independência política, mas na realidade verdadeiramente submetidas por outros meios nos quais, se não entra a força das armas, emprega-se a habilidade que costuma ser infinitamente superior.”
(Perón, 1968)
1.
Em junho de 2025 na Argentina é divulgada uma sentença judicial que condena a ex-presidenta Fernández de Kirchner a 6 anos de prisão e à impossibilidade de ocupar cargos públicos de maneira permanente.
Não devemos questionar a necessidade de abordar casos de corrupção e ter um sistema que controle e aplique as medidas necessárias. No entanto, é necessário prestar atenção às irregularidades que não apenas impedem o devido processo, mas, acima de tudo, zombam dos fundamentos legítimos do nosso sistema político.
Por um lado, a divisão de Poderes como indispensável para o funcionamento correto da República. Por outro lado, a proscrição política dos movimentos representativos dos interesses dos mais fracos como um golpe ao sistema democrático. Ambos estão relacionados e são de extrema gravidade, embora distintos entre si.
2.
A ideia de República pode ser utilizada a favor ou contra o fortalecimento de uma Nação, dependendo de quem seja o enunciador. Nesse sentido, é interessante a noção de institucionalidade da República e como a mesma pode ser democrática ou antidemocrática.
A estrutura institucional, as regras do jogo sistematizadas em normas legais através de processos de decisão representativos e equilibrados na divisão de poderes, constituem a base sólida para conseguir construir uma sociedade de consensos básicos para, a partir daí, avançar em direção àquilo que almejamos alcançar como comunidade.
As vinculações entre o Poder Judiciário, os grupos de grande concentração econômica e os interesses de agentes externos geram a suspeita e o temor de que as garantias do Estado de Direito possam efetivamente se sustentar no marco de um Estado que permite a violação dos consensos mínimos estabelecidos: divisão de Poderes, sistema democrático, igualdade perante a Lei, Estado de Direito.
É indispensável o chamado à consciência histórica das resistências antioligárquicas em nosso país, assim como a ofensiva das classes dominantes quanto ao estabelecimento e perpetuação da exploração, a tal ponto de bombardear a Plaza de Mayo e civis, proscrever um movimento político, fuzilar e desaparecer pessoas, expropriar bebês. A institucionalidade tem sido historicamente burlada em nome de uma República falsa, como uma reação de grupos de poder econômico dispostos a tudo para moldar o status quo.
A sentença contra Cristina nos convida a pensar na gravidade de burlar as regras do jogo institucional em um país como o nosso, e a armadilha de um sistema político que pode ser injusto e desigual, consolidando uma situação de decadência do nosso país e do nosso povo.
Tendo construído um aparato estatal e uma sólida institucionalidade, os primeiros governos peronistas foram condenados como fascistas e antidemocráticos, visões que continuam presentes até hoje. Essas argumentações justificaram as maiores intervenções na institucionalidade do nosso país, e das mais atrozes violações ao Estado de Direito como tal, incluindo garantias liberais como o respeito à vida, liberdade de consciência e opinião política. Nesse sentido, a régua sobre a institucionalidade republicana se sustenta de forma imparcial, e de acordo com limites estabelecidos por aqueles que têm acesso a esferas de poder inalcançáveis pelas maiorias que sofrem as consequências de governos que planejam a exploração e a pobreza por meio da transferência de renda a setores concentrados.
Atualmente, os poderes estão constantemente desafiando e inclusive ultrapassando os limites da nossa ordem política institucional com vetos e decretos presidenciais, supressão de organismos estatais e perseguição política por meio do Poder Judiciário.
A necessidade de defender a República Argentina reside na evidente necessidade e desejabilidade de uma ordem. Merecemos a possibilidade de viver em uma sociedade que tenha mecanismos de canalização política em funcionamento, dentro de limites mínimos, como poderia ser, a divisão de poderes. Ao povo argentino interessa ter um país em paz e institucionalmente forte para poder alcançar os princípios de soberania política, independência econômica e justiça social.
3.
Como Perón nos explica: a falta de independência e soberania política permite a interrupção de nossas ordens políticas, perturbando os consensos, a ordem e a paz. A presença de uma oligarquia, grupos concentrados de poder intervindo no status quo, impossibilita a construção de um sistema democrático legítimo e representativo.
O perigo de uma perseguição a uma líder política após a instauração de um projeto de país baseado no endividamento externo, na financeirização extrema da economia, no extrativismo e no empobrecimento das condições de vida, deveria nos causar grande preocupação.
Se partimos da ideia de uma sentença judicial que apresenta irregularidades, a violação dos mecanismos consensuados e estabelecidos requer a exigência e defesa pública do nosso regime político republicano e democrático, que tantas vezes foi burlado. Acima de tudo, enunciar e denunciar a proscrição política como uma estratégia conhecida em nosso país.
Atualmente, a Argentina encontra-se enfraquecida. A organização de um movimento de soberania nacional apresenta desafios perante os quais o papel unificador de Cristina Fernández de Kirchner não é casual. A impunidade adquirida pelos grupos aos quais nada importa o cuidado da Nação Argentina surge não apenas do enfraquecimento do sistema republicano violando a institucionalidade, mas também da intervenção no sistema democrático ao excluir possíveis representantes dos interesses da comunidade.
Não é justo viver em um sistema democrático que reduz as possibilidades de representação. Isso quer dizer que, ainda que haja um processo eleitoral, ele não é legítimo se há movimentos ou referentes políticos proscritos. Inevitavelmente, os poderes concentrados opositores ao kirchnerismo encontram-se hoje aliviados e celebrando uma jogada que impossibilita uma verdadeira democracia.
4.
O objetivo fundamental sempre é e foi evitar a violência. A interrupção da institucionalidade pode se transformar em caos interno e isso é algo que precisamos evitar. Deve ser nosso objetivo construir ordem e paz, instituições legítimas em seu devido funcionamento para o fortalecimento de um país que se encontra em crise, com pobreza, corrupção e desesperança.
A convivência política entre os setores da sociedade é indispensável, como bem estabelece a doutrina justicialista: a harmonia entre capital e trabalho. É indispensável reacender os debates políticos, fortalecer a formação política, e este é o momento de manter essa chama acesa.
Nossa força hoje estará na reflexão dirigida à unidade dos setores populares, do setor produtivo, frente aos grandes poderes concentrados que especulam para se consolidar como donos do mundo – e dos nossos destinos.
O Poder Judiciário – todos os poderes – devem responder aos interesses do povo. Será nossa responsabilidade sussurrar e gritar quando for necessário, que aqui estamos, observando, repudiando a atuação corrupta diante do republicano e do democrático, mas sobretudo, diante das vidas que constituem uma comunidade em luta e sofrimento.
Buscamos sim, desde o amor, a paz, a ordem, a soberania política, a possibilidade de escolher e decidir, mas sobretudo, a possibilidade de garantir a justiça social. Superar a indiferença e a crueldade diante das dores de nossa pátria.
Queremos uma Argentina unida, sem regionalismos separatistas, sem instabilidades internas que justifiquem infiltrações externas, sem institucionalidade dobrada por interesses privados, setoriais. Seguiremos resistindo, porque apesar de tudo, não nos venceram.
Referencias
Perón, J.D. (1968). La hora de los Pueblos. Buenos Aires: Ediciones Argentinas.