[Artigo escrito para o projeto de mídia digital feminista, Revista Akelarre]
Vivemos o nosso dia a dia nos sentindo protegidos, amparados por uma ordem, pela previsibilidade do nosso entorno e pela suposta coerência interna de seu funcionamento. Entendemos que existem mecanismos para a defesa contra as injustiças, instituições que validam reclamações, uma autoridade a quem reclamar, um Estado que garante direitos.
O Estado, como autoridade sobre o monopólio da violência física, com o controle dos meios de coerção em um território exclusivamente delimitado, se legitima e fundamenta na vontade popular do povo e na busca pelo bem-estar geral. No entanto, ao longo da história, em diversas ocasiões, os Estados atuaram contra a vontade popular e contra o bem-estar geral, violando os direitos humanos, embora mantendo seu monopólio da violência legítima, o que implica a disposição de meios e instrumentos para exercê-la, fenômeno denominado terrorismo de Estado.
A pergunta é: quais são as possibilidades que a população tem de avaliar, analisar e, sobretudo, controlar para que os meios e instrumentos do Estado, como monopolizador do exercício da violência, sejam exercidos em correspondência de fato com determinados valores e/ou se abstenham de determinadas formas corrompidas? É sabido que os Estados declaram e conduzem guerras, mas o que faz as populações pensarem, acreditarem (talvez até como uma forma de fé), que o Estado não declarará guerra ou usará as forças policiais ou militares contra a própria população, o pequeno comerciante, a criança, os vizinhos e as vizinhas?
Poderia-se pensar que a guerra contra a população não se declara apenas por meios militares, até que ponto as leis e normas que precarizam a vida da maioria das pessoas em favor da concentração em outras poucas não são um atentado contra as populações? Em um contexto de capitalismo financeiro, onde os direitos humanos junto com o nosso planeta e sua biodiversidade são constantemente desvalorizados, o Estado funciona então, como garantidor de direitos ou como a estrutura necessária para o capitalismo, disposto a pagar qualquer custo?
Se o Estado não atua em função dos interesses coletivos e atua em função de interesses setoriais da população, seu fundamento último, que lhe confere legitimidade, se quebra. Embora já não seja legítimo que ele possua o monopólio da violência, resistir a ele continua sendo desproporcionalmente desigual, pois o Estado ainda dispõe desses instrumentos, enquanto a sociedade civil não. Essa assimetria surge do controle diferencial de diversos recursos econômicos, ideológicos, de informação e de coerção física. Quais são as possibilidades de resistência das populações neste caso? Como evitar que essas resistências nos levem à anomia, ao desordem, ao genocídio?
As instituições democráticas parecem estar em crise na América Latina, enquanto surgem novas formas de opressão e exclusão, que em muitos casos estão fazendo uso do poder de coerção concentrado nas mãos do Estado, com o retorno das forças militares à vida pública. Parece que o estado de natureza hobbesiano, a inexistência de normas e a imposição do mais forte sobre o mais fraco, com o constante risco da própria vida, é de fato uma realidade complexa e presente.
O Estado deve ser conduzido por governos que consigam dar-lhe uma orientação, um determinado projeto político, mas acima de tudo deve ser capaz de articular os diferentes setores da sociedade para alcançar acordos e consensos.
O verdadeiro desafio para os movimentos que tentam transformar o mundo em um lugar melhor para o desenvolvimento da vida e reivindicar a justiça social é articular com aqueles que não pensam da mesma maneira, e até integrar todos os setores da sociedade como legítimos, e não apenas os nossos, em nossos projetos.
O avanço dos pensamentos conservadores e reacionários em nossas sociedades é visível nos resultados eleitorais das democracias ao redor do mundo. Alguém está em posição de subestimar e desacreditar as maiorias em processos eleitorais? O que acontece com as populações latino-americanas que votaram em Macri ou Bolsonaro, como lidar com essa situação? Como estabelecer canais de comunicação entre os dois lados da questão, em momentos em que é urgente?
Tentar entender as lideranças que possam chegar ao poder do Estado implica compreender os diferentes setores que compõem nossa sociedade, e é imprescindível que todos os setores articulem e negociem em favor da proteção da vida, acima da militarização, da violência e da morte como mecanismos de organização das sociedades.
A organização social e a participação política em espaços institucionalizados de poder devem ser ferramentas de ordem e resistência, assim como o nosso repúdio e desprezo pela política e pelas instituições liberam espaço de poder para limitar nossa capacidade frente aos avanços violentos dos modelos de imposição e violação dos direitos humanos. É imprescindível articular, negociar e gerar acordos que possibilitem uma condução política e evitem situações de anomia e destruição, uma desculpa perfeita para intervenções antidemocráticas.
Hoje, mais do que nunca, aprendemos que não devemos subestimar o poder do Estado, nem assumir que ele será sempre exercido em função dos interesses coletivos, devido à realidade que atravessa a América Latina. Devemos pensar o Estado e suas forças como instâncias que perigosamente podem acabar em conduções equivocadas, entendendo que todos os atores e todas as vozes devem convergir em negociações que permitam sustentar não apenas a democracia, mas também a governabilidade e a vida.
Referencias
O’donnell, G. (1978). Apuntes para una teoría del Estado. Revista mexicana de sociología, 1157-
1199.
Ob. cit.